“As Crônicas de Gelo e Fogo” é uma série de livros épicos escritas
por G. R. R. Martin cuja quarta temporada de sua adaptação
para a televisão (intitulada Game of Thrones) estréia hoje na HBO.
Passado nos continentes de Westeros e Essos, contando, entre diversas
subtramas, a luta entre as diversas famílias para ocupar o Trono de Ferro
(símbolo máximo do poder no Reinado). Com uma temática como a em questão e um
escritor pautado por uma trama realista como Martin, a história
acaba por abordar uma série de elementos de política e economia que refletem o
despreparo do aparato estatal para lidar com os problemas da população. Mesmo
que não seja explicitamente libertária, não se pode deixar de notar os muitos
elementos da defesa da liberdade existentes em cada pequeno detalhe da obra.
O viés
crítico ao governo já pode ser mostrado na concepção dos personagens. Optando
por não dividir aqueles que pleiteiam o Trono em
“heróis” e “vilões”, a escrita de Martin é audaz em demonstrar
que cada um dos personagens se encontra em um linha tênue entre essa visão em
preto e branco da realidade. Essa visão pautada no realismo serve como forma de
humanização daqueles que almejam o poder, fazendo com que o leitor claramente
perceba que – por mais que acredite que um ou outro poderia ser um rei
melhor -, o conflito diga mais respeito aos interesses individuais de cada
personagem do que a uma suposta busca pelo “bem comum”.
Sendo
oportuno que tanto na literatura quanto na televisão sejam mostradas inúmeras
cenas da população sofrendo para tentar viver num momento de dificuldade,
enquanto os monarcas fazem o possível para destruir as casas e queimar as
plantações de seus súditos (não por acaso, a direção da série opta comumente
por efetuar enquadramentos em que é possível perceber o rosto entristecido de
personagens que pouco acrescentam em termos narrativos). E a palavra “súdito” é
utilizada aqui por conter dentro de sua própria origem etimológica (do latim,
“subiectus”, pessoa sob o controle ou domínio de outra) a população que, em
teoria, deveria servir em uma clara posição de inferioridade àqueles que detém
o poder. Mesmo que eventualmente as elites efetuem obras que podem servir para
proteger a população, como muralhas, o próprio livro deixa claro que aquilo que
eles realmente buscam é se proteger de invasores. A população é só um objeto
secundário de uma política que, buscando emprestado um pouco da escola
econômica da escolha pública, o maior objetivo é maximizar o bem-estar dos
monarcas.
É perceptível
que, na maior parte do tempo, aqueles que almejam Trono de Ferro apenas se
importam com os seus súditos na medida em que devem explicar os motivos que
supostamente possuem para estarem em uma posição de dominação. Com os critérios
para a delimitação do poder tão elásticos, em determinado momento vemos cinco
personagens admitindo possuírem legitimidade para ser o próximo rei. Sendo
irônico que até mesmo aqueles que se dizem herdeiros legítimos de Robert
Baratheon (o último monarca vigente) possuam um argumento ocasional, pelo
próprio Robert não ter nascido rei e só ter conseguido o posto após a deposição
de um reinado século dos Targaryen (e que também foi estabelecido por meios
coercitivos). Num dos diálogos mais marcantes da obra, um dos personagens
afirma que o poder reside onde as pessoas acreditam, de forma que aqueles que o
almejam necessitam arranjar justificativas que convençam os demais a razão de
possuírem legitimidade para tanto (gerando uma indagação sobre as
justificativas românticas da noção de democracia não serem da mesma forma um
mero mecanismo para a manutenção do poder vigente).
O trunfo dos
candidatos ao trono é justamente o de conseguirem servir como um símbolo para
fazer com que outras pessoas lutem por seus ideais. Eventualmente, em um grande
eufemismo, muitos desses líderes acabam por sucumbir, gerando no leitor ou
espectador um misto de tristeza ou revolta que o faz perceber em um nível
microscópico os estragos provenientes de um estado de guerra e o fazendo
imaginar em que estado se encontram os familiares inúmeros dos súditos
aniquilados na guerra civil (sendo grande parte do sucesso da obra a sua
habilidade de trazer a tona os sentimentos de perda oriundos desses conflitos).
Um momento que consegue traduzir este caráter simbólico trazido pela figura do
rei é aquele que um dos que almejam a coroa é assassinado pouco antes de uma
batalha, deixando um exército enorme sem a coesão para guerrear. O texto é ágil
ao relatar que o batalhão em nada se modifica sem a sua liderança (por ele não
ser um grande combatente ou líder de batalhas) e que, caso fosse do seu
interesse, poderiam enfrentar seu inimigo e o derrotar da mesma forma, devido
ao seu alto contingente numérico, mas a ausência da figura de união os retira
da batalha, fazendo com que as tropas se unam àquele que outrora era inimigo
(por este figurar como a nova figura de coesão entre eles).
Outro tema
recorrente é como os detentores do poder são demonstrados como pessoas cujo
principal objetivo é o de aumentar a sua esfera de alcance. A narrativa é hábil
ao retratar a família mais rica da obra, os Lannisters – aquela que
esteve durante séculos ao lado do reinado dominante, feito que conseguiu manter
mesmo durante a queda da antiga monarquia, demonstrando que de nada importa o
poder econômico se não estiver aliado ao político. Da mesma maneira, a capital
do reinado, Porto Real, é descrita como um local permeado por intrigas
políticas, a ponto de a espionagem se tornar um modo corriqueiro de se obter
informações. Não à toa, a única família cujo objetivo não é a expansão de poder
a todo custo, os Starks, é justamente aquela que acaba sofrendo consequências
drásticas por subestimar as capacidades de seus oponentes, demonstrando que a
própria natureza do jogo político é a de selecionar de forma natural aqueles
que se demonstram mais aptos a mantê-lo (espectro retratado em determinado
momento de forma bem crua na magnífica frase: “Quando se joga o jogo dos
tronos, ou você ganha ou você morre”).
A incapacidade dos governantes em promover uma economia sadia é também
demonstrada quando se percebe que, mesmo com a ameaça de um ciclo produtivo
menor com a chegada do inverno rigoroso (agravado pelo fato de que as estações
possuem uma duração de anos no universo em questão), todos os gastos são
resumidos num desenvolvimento do aparato bélico (cujo uso inevitavelmente leva
à destruição de propriedade e diminui a produtividade). O déficit da Coroa é
relatado como impagável e a única preocupação daqueles que o deveriam
administrar é como postergar ainda mais a dívida pública por meio de operações
com os grandes banqueiros. Mesmo que Martin não seja um autor
com um profundo conhecimento econômico, não é difícil perceber que esta
política de mal-estar social (com aumento dos gastos e diminuição da produção)
gera como consequência imediata um efeito inflacionário.
Enquanto essa
luta por poder corrói Westeros, com o passar do tempo se torna notório que o
continente se aproxima de uma ameaça real e apenas uma organização está
empenhada em enfrenta-lo: a Patrulha da Noite. Definida como uma organização
paramilitar que serve como linha divisória entre a área que o Reinado detém o
poder – além da qual apenas habitam os ditos Selvagens – e sobrevive a
milênios, independente de quem detém o comando da estrutura política, e que seu
principal objetivo é a proteção da população contra uma ameaça expulsa em
tempos remotos e que ameaça voltar: os Outros (uma espécie de mortos-vivos em
formato humanoide). Sobrevivendo à margem do governo, recebendo poucos recursos
e contingente humano por parte dos líderes políticos, a Patrulha se encontra
cada vez mais frágil e sem condições de lidar com o perigo iminente. Um momento
que demonstra a despreocupação dos burocratas para a ameaça é um que
determinado personagem chega a ironizar a possibilidade de ataque dos Outros
afirmando que, caso venha a ocorrer, seria uma boa forma de enfraquecer seus
inimigos que se encontravam mais próximos do Norte (área onde inicialmente o
ataque iria ocorrer).
Dentro de um
universo permeado pelos conflitos em torno da soberania, são justamente os
ditos Selvagens que demonstram melhor conhecer aquilo que chamamos de liberdade
(se autodenominando Povo Livre). Mesmo com um menor nível de desenvolvimento,
são justamente eles que conseguem reconhecer os problemas da liderança
hereditária proveniente da monarquia e se formam em tribos cujos únicos líderes
são aqueles escolhidos por suas partes. Talvez o grande erro da organização
social em questão seja a de, mesmo possuindo uma ordem espontânea, não conseguir
utiliza-la para produzir instituições (as quais não precisam ser
necessariamente estatais) que ajudem na resolução de conflito, explicando a
razão da sua falta de desenvolvimento do ponto de vista material, com um modo
de administração da propriedade primitivo. Mesmo com as abjeções que podem ser
feitas, é justamente do encontro entre eles e os personagens provenientes do
“continente” que surgem alguns dos melhores diálogos da obra, demonstrando a
fragilidade da suposta legitimidade existente na estrutura política por parte
dos habitantes de Westeros e o quão – não obstante seu avanço em muitas outras
áreas – primitivos eles são em suas crenças.
Toda obra de arte deve ser um retrato de sua época. Ao utilizar um
cenário onde supostamente existe a fantasia, com direito a magias e
dragões, George Martin consegue fazer uma análise das
principais fraquezas da noção do Estado moderno, utilizando um suposto
feudalismo como uma oportuna alegoria. Não se pode dizer que as “Crônicas de
Gelo e Fogo” sejam necessariamente libertárias, e o próprio autor sendo um
Democrata assumido torna esta possibilidade remota, mas esse tipo de discussão
acaba por se tornar inócua. Os amantes da liberdade devem ter em mente que, a
despeito de qualquer intenção, Game of Thrones consegue
demonstrar como ninguém as consequências inevitáveis da atividade estatal e
como a política, com suas intenções de se perpetuar e atender aos interesses do
estamento burocrático, não consegue fornecer as ferramentas necessárias para
que os interesses da população sejam defendidos.
TEXTO EXTRAÍDO DO BLOG liberzone.com.br.